Criado para ajudar, temporariamente, pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade buscando uma transformação social, hoje a sua eficácia está sendo questionada
Em 2003, o Bolsa Família foi criado pelo Governo Federal, através de uma transferência direta e condicionada de renda, cujo objetivo era erradicar a fome, tirar as pessoas da pobreza e ajudá-las a voltar ao mercado de trabalho. Nos últimos meses, o Programa tem sido discutido se realmente continua atendendo o seu objetivo primário.
A secretária de Assistência Social de Doutor Ricardo, Eliana Zenere Giacobbo, presidente do COGEMAS/AMAT, estudiosa e pesquisadora do assunto, com a experiência que acumula em duas gestões à frente da pasta, fala sobre sua análise sobre a questão. “Para quem recebe o benefício do Programa BF sem estar doente ou exposto a alguma situação de risco social, o programa pode representar uma escravidão. Receber o benefício de forma permanente, deixando de lado a busca por uma possibilidade de trabalho, uma oportunidade de crescer, de aprender, de evoluir e de se emancipar, pode representar estar sendo escravo do sistema”, afirma ela, convicta do que está falando. “As pessoas podem escolher como viver e trabalhar, é um direito; mas escolher viver permanentemente dependente do benefício, é decidir largar mão de todo o potencial que cada indivíduo possui, é podar as suas asas e aceitar que possui limites, mesmo sabendo que a maioria das pessoas podem vivenciar momentos de superação”, complementa.
Eliana destaca que cada vez mais cresce o número de aposentados, com direito, pois contribuíram para receber o benefício e cada vez mais o BF vem aumentando o número de famílias beneficiárias (em 20 anos aumentou mais de 600%). Ela questiona: “Até onde o país vai conseguir arcar com o aumento da demanda? Quem vai arcar com tudo isso? De onde vêm os recursos?”. Ela mesma responde: “De quem trabalha, de quem produz. Só o trabalho gera recursos e dinheiro”. E complementa: “Pela legislação, o Programa, que distribui renda, não deveria ser permanente, mas o que estamos vendo, em muitos casos, que ele acaba se tornando uma renda fixa, como uma ‘aposentadoria’ e esse não cumpre o objetivo para que ele foi criado. Da forma como está, é insustentável”.
Emancipar as pessoas: um dos principais objetivos da Assistência Social
Questionada sobre como funcionam e como os programas sociais do CRAS ajudam os beneficiários a se qualificarem profissionalmente, a secretária cita que o programa exige o cumprimento de duas condicionalidades que são obrigatórias para que o benefício seja pago: frequência mínima das crianças na escola (Secretaria da Educação) e pesagem e medição das crianças e mulheres (Secretaria da Saúde). “Mas participar dos programas sociais ainda não é uma condicionalidade, ou seja, não é obrigatório. O tema já foi e está sendo pauta nas reuniões do colegiado (COGEMAS/AMAT). No município de Doutor Ricardo, já oferecemos diversos cursos de qualificação e fica livre para quem quiser participar, muitas empresas da região, na sua grande maioria, nem exigem qualificação para iniciar as atividades, estão sempre necessitando de mão de obra, então não faltam oportunidades. Mas, cada indivíduo pode optar por um trabalho fixo formal, trabalhar de forma informal ou optar por não trabalhar, tem direito de escolha.
“Desde a promulgação da Constituição de 1988 o Brasil se voltou para os direitos, mas esquecemos de olhar para os deveres”, lamenta Eliana, mostrando disposição para fazer algo para que essa realidade mude, para que as pessoas possam se emancipar. “Nosso trabalho é mostrar que a vida pode ser melhor, que a vulnerabilidade, na sua maioria é temporária, que é possível ser independente, se emancipar, curtir a vida e aproveitar todas as possibilidades”, destaca. Ela é categórica: “Sabemos que estudar, trabalhar, pensar dá trabalho e cansa, mas o sentimento de conquistar algo na vida é para quem passa e sente, quem não vive não tem ideia do quanto é gratificante e o quanto é sagrado. Muitas pessoas vão passar pela vida e nunca vão sentir isso, por isso, mostrar essa possibilidade é uma das prioridades”.
Quando irão se aposentar?
Situação comum e bastante abrangente entre os beneficiários do BF é o trabalho na informalidade, sem carteira assinada, sem contribuir com a Seguridade Social, sem direito ao 13º e sem contar tempo de trabalho. Quem não contribui, quando irá se aposentar? Como?
A secretária Eliana alerta as pessoas a pensarem sobre seu futuro, sobre sua velhice. “As pessoas que trabalham e contribuem estão abraçando muita coisa e estão cansando; a idade mínima para aposentadoria vai aumentar e nem se sabe se vai haver aposentadoria, pois se não mudar a situação, o país não terá recursos para cobrir tantos direitos”, avalia, preocupada.
O benefício para quem precisa
Ela frisa que é a favor do benefício e ele precisa cumprir o objetivo nobre para o que ele foi criado. Pela Constituição Federal, a Assistência Social deve ser ofertada a todas as pessoas que dela precisar. “Talvez, em algum momento da vida, eu ou qualquer um de nós poderemos precisar de ajuda e de assistência, nunca se sabe, pois qualquer pessoa pode passar por momentos desafiadores. O que é questionável é a forma intermitente como o benefício vem sendo utilizado em alguns casos e isso nos leva a crer que não há como o país sustentar por mais muitos anos”, ressalta.
“Quem alimenta a vaca?”
Trazendo uma metáfora, a secretária comparou: “cada vez mais pessoas estão bebendo o leite e cada vez menos pessoas estão alimentando a vaca, deste jeito ela vai morrer”. E continua: “é uma forma de dizer que o nosso sistema pode entrar em colapso: pelo aumento de pessoas idosas aposentadas que precisam ser amparadas e cuidadas e têm direito; aumento de beneficiários de programas sociais e têm direito; diminuição de jovens no mercado de trabalho, com aumento dos jovens nem nem (nem estudam e nem trabalham – Brasil em segundo lugar com o maior número), e têm direito. Menos pessoas alimentando a vaca. A conta não tem como fechar, não sou eu Eliana que falo, são os números que mostram o que o futuro próximo está para acontecer. São discussões profundas, delicadas, complexas e com diversos pontos de vistas, não há apenas dois lados, são cinco, seis, enfim, muitos lados a serem considerados (do governo, do gestor, do beneficiário, do trabalhador, do contribuinte…).
Perspectivas
Em vista de todos os questionamentos e apontamentos sobre o presente e o futuro do BF ao nível regional, estadual e até nacional, Eliana tem esperança de que algo possa mudar para que o Programa siga sendo viável e cumprindo sua nobre missão. “Se não for agora, algo deverá acontecer no futuro bem próximo para que se encontre um equilíbrio; que os programas tenham melhores critérios, que as condicionalidades sejam mais cobradas e ampliadas, que os benefícios possam ter início, meio e um final feliz para todos, pois do contrário todos vão perder”, reforça, ao finalizar. “Como já falei, não sou eu quem fala, os números mostram”.