Agosto é marcado pelos 15 anos da Lei Maria da Penha e pela campanha Agosto Lilás
Não há como não falar de violência doméstica, violência contra mulher ou feminicídio e não lembrar-se de algum caso conhecido. Todos têm a amiga ou a conhecida ou a vizinha que sofre ou sofreu algum tipo de abuso, seja psicológico ou físico, por um companheiro, ex-companheiro ou familiar.
Por isso, as campanhas de conscientização, como a do Agosto Lilás, promovidas por meio das Delegacias de Polícia Civil, são importantes para que as vítimas se sintam acolhidas, protegidas e amparadas, em um momento de fragilidade e vulnerabilidade. É necessário sensibilizar e conscientizar a sociedade sobre a necessidade do fim da violência contra a mulher, divulgando serviços especializados da rede de atendimento à mulher em situação de violência.
A inspetora de polícia responsável pelo Cartório da Mulher e Vulneráveis de Marau, Caroline Dias Boff, fala da importância do projeto estadual da Polícia Civil, Sala das Margaridas. “Hoje contamos com 32 salas em todo o Estado, com o objetivo de ampliar a cada dia mais esse número. A instituição tem se empenhado em melhorar o atendimento às vítimas e isso inicia na criação de um ambiente mais acolhedor. Aqui em Marau, inauguramos a Sala das Margaridas em 08 de março, no Dia Internacional da Mulher. Ela ainda não está em pleno funcionamento, em razão da carência de servidores. O Cartório da Mulher tem espaço e demanda para três escrivãs, mas hoje sou eu que toco tudo sozinha e, em razão disso, o atendimento das vítimas é feito, via de regra, pelo policial plantonista. Estamos batalhando com as Prefeituras da região pela cedência de estagiários para tentar suprir parcialmente essa demanda do Cartório da Mulher”, explica Caroline.
Caroline, junto ao delegado responsável pela Delegacia de Marau, Norberto Rodrigues, tem usado o mês de agosto para ampliar a conscientização e o combate à violência doméstica em toda a região, por meio de palestras e encontros, fortalecendo o entendimento de que a denúncia é necessária.
Segundo Caroline, o mês de abril foi marcado pela baixa incidência de registros de violência doméstica. “Em abril, estávamos com a bandeira preta vigente no Estado, o que causou uma diminuição generalizada dos registros de ocorrência. Mesmo em bandeira preta, as Delegacias de Polícia seguiram com o atendimento ao público para registro de ocorrência. No entanto, em razão das restrições, houve menos procura. Provavelmente, os casos de violência doméstica seguiram ocorrendo, mas nós não fomos acionados”, continua a inspetora.
No entanto, com a campanha Agosto Lilás, o número de casos denunciados na primeira quinzena do mês já é superior aos meses anteriores.
Denúncias devem ser feitas em qualquer órgão da rede de proteção
Todas as ocorrências atendidas pela Brigada Militar, que configuram em violência doméstica e são enquadradas na Lei Maria da Penha, são encaminhadas a Policia Civil, onde fica a cargo do Delegado responsável a providência de como será autuado o agressor.
Conforme relata o comandante da Brigada Militar de Camargo, Marcelo Vinicius dos Santos, tudo que é reportado para a BM, o plantonista fica responsável pelo encaminhamento. “Esses delitos ocorrem mais em finais de semana e a noite, por isso o efetivo de plantão presta o primeiro atendimento, encaminhando a vítima ao Hospital de Pronto Atendimento e o acusado é encaminhado a Polícia Civil. Em muitos casos, as vítimas já procuram diretamente a delegacia especializada, existem diversos casos desse tipo, por isso não ocorre a interferência da BM. Mas, estamos à disposição para prestar qualquer atendimento às vítimas”, explica o comandante.
As vítimas têm medo de denunciar por não acreditarem na força da Lei
Um dos princípios primordiais de não haverem denuncias de casos de violência doméstica, é a insegurança de que a lei será efetivamente cumprida por seu agressor. “A lei em si é muito boa, pois ela foi aprimorada ao longo dos anos. No entanto, ela não é suficiente, por si só, no combate à violência de gênero. Muitas vezes, esbarramos no fato de a vítima ser financeiramente dependente do agressor ou de não ter apoio da família para deixar o relacionamento abusivo, isso são exemplos. Se há algum ponto a ser aprimorado, sem dúvida, é o investimento do Poder Público em empoderamento das mulheres, para saírem do ciclo da violência doméstica, e em conscientização dos homens quanto aos comportamentos violentos contras as mulheres”, enfatiza a inspetora de polícia Caroline.
Mais de 80% das vítimas não denunciam seus agressores
É de conhecimento público que grande parte das violências retratadas não são denunciadas pelas vítimas, os motivos são os mais variados possíveis, desde dependência emocional, financeira, familiar ou por medo de que algo pior possa acontecer ao denunciar seu agressor.
Uma vítima, que prefere ter sua identidade preservada, relata ao Eco Regional alguns momentos em que esteve em situação de vulnerabilidade e como os traumas vividos não se apagam facilmente, mesmo sendo afastada de seu agressor. “Eu nunca tive coragem de denuncia-lo por medo do que poderia acontecer a mim, a minha família, ao meu emprego e às pessoas próximas. Me sentia acuada, com a elevada importância que ele tem na comunidade e influência que exerce. É difícil ver seu agressor andando livremente e posando como o melhor homem do mundo. Tenho medo dele, tenho medo por outras mulheres que possam acreditar que são a salvação e a mudança dele, como um dia eu também acreditei”, diz.
A vida a dois não é uma tarefa fácil, e quando se vive com o medo e com a ansiedade dentro de sua própria casa, nada pode ser pior. “Eu não tinha com quem falar, com quem me abrir. Como explicar que o homem por quem eu era apaixonada e que se mostrava tão elegante e gentil na frente do outros, simplesmente não era real? Ele era perfeito aos olhos do mundo, mas nunca aceitou uma crítica ou algum problema. Os sinais sempre existiram, parecia que eu não queria ver”.
As agressões psicológicas iniciam de forma sútil, a vítima sente-se em um cárcere privado, dentro de sua própria mente, pois não é boa o suficiente, não é agradável o suficiente, não entende o bastante para manter a harmonia do lar. Sente culpa de que se o casamento acabar a culpa será apenas sua e que a sociedade irá julga-la como uma mulher que não consegue manter seu marido feliz.
“Os sinais sempre foram fortes e presentes, desde o início. O erro foi acreditar que eu poderia mudá-lo, que por mim ele seria diferente do que foi com outras. Mas não, foi até pior. Ele já tinha uma queixa na Delegacia, registrada pela ex-mulher, que eu acreditei ser falsa, que ela queria apenas prejudicar a ele e a nossa felicidade, que ele jamais seria capaz de fazer algo desse tipo, que ele era um homem de honra, de valores há tanto tempo perdidos. Um cavalheiro que abre a porta do carro e trata sua esposa como uma rainha, minha admiração por ele crescia a cada dia, eu idolatrava, não o homem que estava ao meu lado, mas a ideia que criei dentro de mim a respeito dele”, continua.
Os silêncios intermináveis dentro de casa, a falta de afeto, a agressividade, as palavras duras e rancorosas tornavam os dias longos e de pura dor e sofrimento. “Quando ele quebrou o primeiro objeto dentro de casa, meu alerta ligou, mas não o suficiente para tomar uma atitude drástica, afinal, ele era apenas temperamental, nada que amor e cuidados não solucionassem. Eu devia amá-lo mais, desafiá-lo menos, eu era a responsável por fazer ele feliz. Eu sabia que ele jamais iria me agredir, afinal, ele também me amava”, fala emocionada.
As brigas e os insultos eram cada vez mais frequentes, e a vítima relata que em alguns momentos chegou a pensar em acabar com a própria vida. “Eu o amava tanto que não podia viver sem ele, mas não conseguia mais viver naquela situação. A ansiedade de quando seria o próximo surto de raiva, quantos dias iriam durar desta vez. Você se sente desprotegida, receosa, com medo constante, sempre na dúvida, o que eu vou fazer de errado? Será que vai ser algo que eu vou dizer, fazer, comer, pois qualquer coisa começou a virar um motivo para que objetos fossem quebrados e silêncios instaurados, e a raiva dele não passava nunca”, fala a vítima.
Momentos de tensão pautam a rotina de muitas mulheres que sofrem de torturas psicológicas, pois a dependência do seu agressor (financeira, emocional, familiar), torna um caminho tortuoso para encarar seus medos e seguir em frente. “Eu passei por um momento de doença, quando tive suspeita de Covid, ele não falava comigo há duas semanas, mas se sentiu obrigado a me ajudar na doença. Me trazia comida em pratos sujos, em nenhum momento demonstrou algum tipo de preocupação genuína, apenas aquela que a sociedade o obrigava a ter. Mentia para as pessoas que estava me cuidando como uma princesa, mas me deixava um dia inteiro sem comida”, relata.
Enfrentar seu agressor quando ele é o provedor da casa, torna tudo mais difícil. “Eu buscava conselhos com advogados, com psicólogos e a única coisa que eu ouvia era que eu precisava denuncia-lo. Mas eu apenas queria ter o meu relacionamento de volta. Um dia cheguei em casa e ele tinha colocado diversas latas de cerveja dentro do meu guarda-roupas, disse que não queria álcool em sua casa e que se eu queria feder igual uma alcoólatra, ele iria ajudar. Isso me destruía por dentro, mas eu apenas limpava em silêncio, por medo do que poderia vir ser ainda pior. Em momentos a briga vinha por que eu falava alto demais para ele, ou assistia TV no quarto, ou estava fumando demais. Eu nunca sabia qual seria a motivação, mas eu sabia que ele encontraria”, segue o relato.
A vítima relata que o último mês foi o mais trágico de todos, pois não eram apenas insultos e ameaças verbais, eram mensagens recebidas no trabalho, forçando a ansiedade, era o afastamento de todos, a intolerância com qualquer um que se aproximasse. “Em muitos momentos eu acreditava que tudo iria melhorar, mas era apenas uma ilusão. Mas eu acreditava, pois não imaginava a minha vida sem ele. Eu tomei a decisão de sair de casa, após ser trancada na rua por ele e ter que passar a noite na casa de conhecidos. Foi humilhante para mim, pois a vida dele nunca mudou em nada, todos o tratam da mesma forma de sempre”.
A saída do lar conjugal foi marcada por ameaças e intimidações. “Ele me mandava embora constantemente, mas na hora em que me preparava para sair, ele fazia questão de me insultar, revirar caixas que eu estava empacotando, exigir que eu fizesse a mudança apenas em um horário que ele pudesse acompanhar. Suas últimas palavras para mim foram ameaças que ele fez questão de anotar, acredito para não esquecer, ameaçou meu trabalho, meus poucos amigos, meus chefes e meu irmão, que mora longe, mas é a pessoa com quem tenho mais proximidade. Suas exatas palavras foram ‘eu não me importo de esperar um ano ou dois para destruir a sua vida e a de qualquer um que você ame, não ouse me desafiar, e se passar por mim na rua, abaixe a cabeça, nunca mais quero te ver andar de cabeça erguida'”, relembra a vítima.
Hoje, com um olhar mais atento e menos julgador, a vítima relata que, mesmo sem a denúncia, enxerga atos como o que passou com mais empatia e respeito. “A culpa não é da vítima, nunca é. Dizer que uma mulher não deixa seu agressor por que não quer é uma sentença equivocada, precisamos dar segurança, acolhimento para as vítimas, pois o medo não passa nunca. Não tem um dia que passe em que não pense em denunciá-lo, mas eu ainda tenho medo dele e ainda baixo a cabeça quando o vejo na rua”, finaliza.
Polícia Civil do Estado lança o projeto “Polícia Civil por Elas”
O novo programa de enfrentamento à violência contra a mulher, lançado pela Polícia Civil nesta terça-feira, 10, é composto por três grandes eixos de defesa. Intitulada Polícia Civil por Elas, a iniciativa visa a prevenção de crimes contra a mulher e o empoderamento pessoal e profissional delas.
Para a chefe de Polícia do Estado, Nadine Anflor, o trabalho constante da instituição para ampliar o acolhimento às mulheres beneficia e dá força para elas. “O programa reúne toda a estrutura que a instituição já dispõe no enfrentamento à violência contra a mulher e busca parcerias na iniciativa privada para ajudar na luta contra esse tipo de crime”, explica.
Umas das iniciativas mais expressivas que integram o programa é a implantação sequencial de Salas das Margaridas, que são espaços reservados, privativos e acolhedores, onde ocorrem registros de ocorrências policiais, oitivas das vítimas e solicitação de medidas protetivas de urgência, além das demais ações que fazem parte da Lei Maria da Penha.
Atualmente, existem 40 dessas salas em todo o Estado. Outro eixo é a elaboração de atividades preventivas, como palestras em instituições públicas e privadas e ações de orientação à população.
O mapa e o retrato da violência
O mapa da violência contra as mulheres, atualizado em junho deste ano, foi apresentado pela chefe de Polícia do Estado, delegada Nadine Anflor. De janeiro a junho deste ano, 49 mulheres sofreram feminicído, sendo que no mesmo período de 2020 foram 51 vítimas. Outro dado que merece atenção, segundo a delegada, diz respeito ao agressor. Dos casos consumados de feminicídio neste ano, 52% dos agressores estão presos e 36,7% cometeram suicídio. “Queremos a partir do próximo semestre, dando tudo certo, iniciar o monitoramento eletrônico do agressor que precisa ser acompanhado de perto”.
Na região de abrangência do Eco Regional, no primeiro semestre de 2021, o município de Arvorezinha tem registrado os números mais elevados de denúncias de violência doméstica, sendo 16 casos de ameaças, 10 casos de lesões corporais, dois casos de estupro e uma ocorrência de tentativa de feminicídio.
Ao todo na região 60 mulheres foram ameaçadas, 24 sofreram algum tipo de lesão corporal, três foram estupradas e duas registraram tentativa de feminicídio.