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Em meio ao cheiro impregnado no barro, no medo de fechar os olhos, da sensação de segurança ter abandonado o barco, me recordo de uma poesia vista em qualquer esquina das redes sociais que mesmo após um ano me fez recordar, em um de seus trechos dizia “Quando as águas baixarem, quando as lágrimas secarem”, e quanto a este imperativo de reflexão não possuo respostas, as lágrimas e as águas um dia iram de secar?

 

Vivemos e recordamos neste início do mês de maio a tragédia das enchentes que tanto massacraram o Rio Grande do Sul, causando uma das maiores tragédias naturais da região nos últimos anos. Mais de 100 cidades foram afetadas, com cerca de 1 milhão de pessoas impactadas pelas chuvas intensas e pelos alagamentos. Perdeu-se muito, perdeu-se tudo em muitos casos, até mesmo aquele que não perdeu sentiu a dor da perda, como ficar apático em meio ao lamento e gritos de socorro de um estado.

Hoje o que vivemos é a dor do que partiu. Quando algo parte, seja uma casa, um objeto querido ou até uma parte da nossa rotina, sentimos não apenas a ausência do que era, mas a quebra de um pedaço de nossa própria identidade.

Na sociedade, costumamos acreditar que somos indivíduos separados dos outros, que não precisamos de nada que venha de fora. Pensamos que podemos fazer tudo sozinhos: ‘eu não preciso de ninguém’, ‘eu me viro’, e por aí vai. Mas essa ideia, que valoriza demais o ‘eu’ isolado, é um grande engano. Na verdade, como seres humanos, somos muito mais complexos do que uma simples individualidade desconectada do mundo ao nosso redor. Nossa identidade é formada pelas relações que cultivamos e pelas coisas com as quais nos conectamos. Nosso trabalho, nossas amizades, o amor, nossos bens materiais, tudo isso faz parte de quem somos e ajuda a compor nossa identidade.

A perda, nesse contexto, desestabiliza a compreensão de quem somos, afetando a percepção da nossa história e das bases que sustentam nossa identidade, surge neste ponto um grande abalo psíquico. Mas após a destruição, o que nos resta? O processo de lidar com o que restou não é simplesmente sobre ‘seguir em frente’; é sobre aprender a viver com as cicatrizes que a catástrofe deixa. Não arriscaria aqui teorizar o luto destas perdas, talvez jamais iremos conseguir medir e escrever sobre o que carregaremos, vimos e ouvimos. Mas há algo sobre a vida que já pude entender, não está perdido aquilo que sabemos onde encontrar, nem um desastre é capaz de apagar nossas vivências e lembranças.

Fomos destruídos e arrasados em meio a destruição, mas jamais derrotados, as lágrimas talvez jamais se secaram, porém após a tempestade, quem somos nós, senão a soma do que resistiu e do que ainda se refaz.

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